Eduardo Magrone
O ano gramsciano de 1997 se fechou, no Brasil, pouco antes do início do verão. O cenário foi a cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Aí, na Faculdade de Educação da Universidade Federal (UFJF), o Núcleo de Estudos Sociais do Conhecimento e da Educação promoveu, entre 26 e 28 de novembro, o seminário internacional "Gramsci, 60 anos depois", com o objetivo de discutir o pensamento daquele marxista, "responsável por alguns dos principais estudos sobre a estrutura das sociedades de capitalismo avançado" [*].
O seminário de Juiz de Fora retomou, assim, o propósito de um outro evento acadêmico realizado na cidade de Franca, em São Paulo, onde a Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) organizou, nos dias 19-22 de maio, o seminário "Gramsci: a vitalidade de um pensamento". Na mesma direção, mas com objetivos mais modestos, trabalhou o Grupo de Teoria Política do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), com a reunião "Gramsci revisitado: Estado, política, hegemonia e poder", nos dias 25-26 de setembro.
Os três eventos evidenciaram que Gramsci continua a ser, no Brasil, um pensador capaz de seduzir, de apaixonar, de provocar os diferentes ambientes intelectuais, sobretudo os jovens (o seminário de Franca foi assistido por mais de 400 estudantes; o de Juiz de Fora, por mais de 150). Como se sabe, Gramsci tem uma interessante fortuna no Brasil, país onde a publicação dos Cadernos temáticos foi iniciada nos anos 60 e onde, sobretudo a partir da metade dos anos 70, o pensamento de Gramsci adquiriu ampla difusão, em meio à crise da duríssima ditadura, ao início da progressiva democratização e ao sucesso mundial do eurocomunismo.
Gramsci funcionou como inspirador de importantes debates dentro da esquerda brasileira, então à procura de uma revisão de seu patrimônio teórico e percurso político, foi utilizado por muitos intelectuais de orientação liberal ou social-democrata, consumido por áreas católicas e usado com grande liberdade em inúmeros ambientes acadêmicos especializados (pedagogia, sociologia, ciência política, antropologia, história). Parte importante do léxico gramsciano (sociedade civil, hegemonia, intelectual orgânico, bloco histórico) foi incorporada à linguagem corrente, tornando-se mesmo uma "moda". Tudo isto indica, entre outras coisas, que no Brasil é bastante grande sua capacidade de "dialogar" com interlocutores diferentes.
Nos três seminários, intervieram, ao lado de alguns dos principais estudiosos da obra de Gramsci no Brasil (Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna, Marco Aurélio Nogueira, Oliveiros Ferreira, Ivete Simionatto, Paolo Nosella), diversos intelectuais mais ou menos especializados (filósofos, historiadores, pedagogos, sociólogos, cientistas políticos), evidenciando a presença de Gramsci nas várias áreas científicas. Em Juiz de Fora, onde se realizou o único encontro internacional, estiveram presentes dois italianos (Guido Liguori e Roberto Finelli), demonstrando a disposição dos pesquisadores brasileiros de estimular o intercâmbio com gramscianos de outros países. Os temas escolhidos para os debates (globalização, sociedade civil, revolução passiva, marxismo, política, democracia, crise) focalizaram o centro da atual discussão sobre Gramsci no Brasil: fazer um balanço de sua presença na cultura política brasileira e examinar a atualidade da teoria gramsciana diante de um mundo que adquire cada vez mais novas características.
Já na conferência de abertura do encontro de Juiz de Fora, Liguori perguntava: se a globalização é um "fato inédito e original", um fenômeno autenticamente "novo", que conseqüências é preciso tirar daí? "Como recolocar o pensamento de Gramsci neste novo cenário e qual interpretação do pensamento de Gramsci se fortalece e se impõe neste contexto?". Polemizando com diversos intérpretes de Gramsci, mas sobretudo com o último livro de Bruno Trentin (A cidade do trabalho. Esquerda e crise do fordismo. Milão, Feltrinelli, 1997) e todos aqueles que "lêem" Gramsci com lentes liberais, Liguori ofereceu uma importante contribuição para o debate sobre a herança de Gramsci e a disputa, ainda viva, em torno do "verdadeiro" Gramsci. "Podemos, se acreditarmos nisto -- afirmou Liguori --, dizer que Gramsci foi um grande, mas que agora pensamos de um modo profundamente diverso. Não podemos atribuir-lhe a aceitação de um sistema socioeconômico que ele abomina".
Este foi o diapasão de inúmeras outras intervenções nos diferentes seminários. Não casualmente repontou com vigor o debate sobre o problema da "sociedade civil", ou seja, o problema da visão dicotômica e não-dialética que pensa a sociedade civil como o oposto mecânico do Estado e da economia, um "outro" nível da realidade completamente separado do mundo dos interesses materiais e mesmo do mundo da política. Foi este um dos temas principais da intervenção, entre outras, de Finelli em Juiz de Fora, dedicada à discussão das "contradições da subjetividade".
Também no Brasil, a categoria de sociedade civil se tornou o pilar da maré neoliberal e invadiu até o universo cultural da esquerda, bastante fascinada em nossos dias pelo tema dos "direitos de cidadania". Em Gramsci, como se sabe, há sempre a defesa da dialética de unidade/distinção entre estrutura e superestrutura, economia, política e cultura, sociedade civil e Estado. Somente neste sentido se pode afirmar o primado da sociedade civil, isto é, o primado daquele âmbito societal que surge como o locus em que se organiza a subjetividade e se dá o choque de hegemonias ideológicas, aquele âmbito que expressa uma dada economia, que é parte integrante do processo global de produção/reprodução das relações de classe. Por isto, os sujeitos sociais se candidatam ao domínio e à hegemonia na medida em que "se tornam Estado". Sem Estado (sem uma ligação com o Estado e sem uma perspectiva de Estado), não há sociedade civil digna de atenção, menos ainda associada ao universo gramsciano: sem Estado não pode haver hegemonia.
Nada há de mais estranho a Gramsci (pode dizer-se: ao marxismo) do que uma concepção de "sociedade civil" maniqueisticamente pensada como o oposto virtuoso do Estado, como o reino vazio de política, em que os interesses (os movimentos sociais, as associações, as lutas pelos direitos) vivem em completa liberdade e em completa liberdade conseguem subverter o sistema da ordem. Uma sociedade civil sem Estado é uma verdadeira "selva" em que coexistem interesses fechados em si, não "comunicantes" e refratários aos "controles" da comunidade política (situação na qual se prolongaria imensamente a não-resolução do problema de saber quem equilibra os interesses, protege os mais fracos e garante direitos e conquistas; situação em que já não mais existe a possibilidade de uma nova hegemonia, em que "público" é somente a soma de direitos individuais/grupais categoricamente afirmados, vale dizer, afirmados sem a recíproca afirmação dos deveres).
Os três encontros fizeram mais do que registrar em grande estilo o ano gramsciano no Brasil. Deixaram patente que a esquerda brasileira pode achar em Gramsci não só um marxista "clássico" e pleno de sugestões teóricas, mas sobretudo um pensador que nos ajuda a compreender nosso tempo e nos oferece uma perspectiva. Noutras palavras, nos oferece precisamente o elemento decisivo não só para estarmos presentes na "grande transformação" de nossos dias, mas para dirigi-la para fins mais justos e generosos, mantendo viva a grande utopia gramsciana de passar de uma sociedade de governantes e governados para uma sociedade de governados que governam. __________________ Para adquirir o número especial da revista Educação em Foco, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, com as intervenções feitas neste seminário, pode-se escrever para Eduardo Magrone, organizador do evento. __________________
Guido Liguori
Gramsci e o taylorismoTambém no debate recente da esquerda italiana se impôs o tema da “crise do político” e do retorno a uma estratégia baseada no “social”. Os processos de globalização e de crise do modelo fordista, no dizer de alguns, teriam diminuído fortemente a importância do Estado e dos Estados nacionais em favor da sociedade civil e das forças econômicas; seja como for, em favor das forças pré-estatais ou não-estatais que na sociedade civil agem e parecem haver conquistado -- sobretudo após o colapso do “socialismo real” e a crise dos vários modelos de welfare de matriz keynesiana -- uma nova centralidade tanto na realidade factual quanto, por reflexo, no “dever ser” da esquerda. A partir deste pressuposto podem se originar hipóteses estratégicas diversíssimas, como aquelas contidas -- mais ou menos implicitamente -- em dois importantes livros recentes: o já citado A esquerda social. Além da civilização do trabalho, de Marco Revelli, e A cidade do trabalho. Esquerda e crise do fordismo, de Bruno Trentin. Por uma parte, Revelli, com efeito, dá por terminada a possibilidade de fundar no trabalho os processos de identidade social, individual e coletiva; por outra, Trentin ainda indica no trabalho o centro dos processos de identidade e de estratégia política, ainda que num panorama nitidamente pós-fordista. Ao lado dessa divergência fundamental, no entanto, é possível divisar também uma convergência importante: ambos os autores -- com percursos biográficos, análises e propostas políticas diferentes -- concordam em que a esquerda deve rever-se radicalmente a si mesma a partir da crítica/superação daquele que foi até aqui o seu comportamento diante da política e do Estado. Nesse texto me interessa, sobretudo, seguir o raciocínio elaborado por Trentin, porque ele se funda em grande medida no “corpo a corpo” teórico-político que o autor empreende com Antonio Gramsci. Trentin, efetivamente, em suas tentativas de repensar em profundidade as perspectivas estratégicas da esquerda, relê com simpatia diversos autores historicamente minoritários da esquerda do século XX, todos reunidos por uma acentuada vocação antiestatal e antiinstitucional, tais como Luxemburg e Korsch, Bauer e Weil; no entanto, é com o autor dos Cadernos que ele debate mais em profundidade e mais amplamente, através de uma complexa leitura plena de luzes e de sombras. Trentin usa Gramsci, nesse livro, de dois modos -- um mais evidente, outro menos. No tocante ao primeiro modo, me refiro à segunda parte do volume, intitulada “Gramsci e a esquerda européia diante do ‘fordismo’ no primeiro pós-guerra”. O outro caso se relaciona, ao contrário, a um uso mais discreto de Gramsci, mas igualmente importante ou talvez até mais importante no âmbito do discurso geral do livro; um uso que liga Gramsci ao conceito de sociedade civil, que consideramos central em todo o volume. O Gramsci que Trentin toma como alvo na segunda parte de seu livro é o Gramsci tanto de Ordine Nuovo quanto de “Americanismo e fordismo”, o Gramsci -- sublinha o autor -- que teria “suposto como racionais e, portanto, imutáveis, as formas históricas de organização e de subordinação do trabalho humano”. Embora Trentin reconheça a Gramsci ter sido menos produtivista do que Lênin, de um modo ou de outro o considera subalterno ao fascínio do modo de produção burguês. Ou seja, considera-o inteiramente dentro daquela cultura terceiro-internacionalista (e não só) pela qual o processo produtivo, a organização científica do trabalho deviam ser transportados do capitalismo ao socialismo sem serem submetidos a crítica. É o Gramsci de Ordine Nuovo quem convidava os operários a substituírem-se aos patrões, mas sem mudar, sem transformar a fábrica, antes e junto com a sociedade e o Estado. Seria justa essa crítica de Trentin a Gramsci? Parece-me que não é destituída de fundamento: também em Ordine Nuovo existe o tema (amplamente presente na cultura comunista do tempo) da necessidade prioritária de preservar e aumentar a disciplina do trabalho e a produção depois da revolução, atribuindo a “culpa” da escassa produtividade operária apenas à presença do capitalista e, desse modo, sustentando que, eliminado o capitalista, também se elimina o problema: O mundo tem necessidade de produção multiplicada, de trabalho intenso e febril; os operários e camponeses somente vão descobrir a capacidade e a vontade de trabalho quando a pessoa do capitalista for eliminada da indústria, quando o produtor tiver conquistado sua autonomia econômica na fábrica e no campo e sua autonomia política no Estado dos Conselhos de delegados dos operários e camponeses. E também existe, além disso, a ilusão (de derivação leniniana) da possibilidade de um uso não taylorista do taylorismo de uma “forma de ‘americanismo’ aceitável para as massas operárias” , como o próprio Gramsci recorda nos Cadernos, falando de Ordine Nuovo. De resto, a tese defendida por Trentin não é nova. E mesmo quem investigou, com resultados interessantes, o tema específico da atitude de Gramsci diante da organização da produção, desde o “biênio vermelho” até os Cadernos, sustentando em geral (com razão) a tese da irredutibilidade de Gramsci à cultura industrialista e produtivista da Terceira Internacional, teve de reconhecer que “falta efetivamente em Gramsci uma reflexão precisa sobre as contradições peculiares ligadas ao taylorismo”. Dito isto, também deve se lembrar que a fábrica diante da qual se encontra Gramsci é, em grandíssima medida, uma fábrica pré-fordista: fordismo e taylorismo se afirmarão plenamente na Itália somente muito mais tarde, e certamente não é casual que uma nova sensibilidade para a organização do trabalho, por parte do movimento operário, só surgirá na Itália com o “segundo biênio vermelho”, em 1968-1969. Deve se lembrar que a peculiar estratégia de conselhos de Ordine Nuovo, original inclusive em relação à soviética, porque tendia a relacionar fortemente Estado e fábrica, política e lugar/sujeito da produção, já representa em si um obstáculo objetivo, uma insubordinação implícita em face da “organização científica do trabalho”. Deve se lembrar que Gramsci sente, e em alguma medida vive, o conjunto dos produtores, operários e técnicos, da fábrica como uma comunidade, um corpo coletivo, o que a meu ver tem implicações na direção de revalorizar o sujeito operário, de não considerá-lo sob aquele aspecto puramente quantitativo que Trentin estigmatiza com razão. E um outro aspecto dos anos de Ordine Nuovo Trentin – do seu ponto de vista -- poderia ter valorizado muito mais: a construção teórica, em Gramsci, de um modelo de Estado não fundado no cidadão, mas no produtor, ou seja, um modelo no qual se tenta uma recomposição de citoyen e bourgeouis, uma vez que Gramsci aceita plenamente o conhecido argumento marxiano, denunciando justamente o caráter abstrato da categoria de “cidadão”. É uma temática que também fala a nosso presente teórico: o horizonte da cidadania -- às vezes se lamenta -- não vai além dos portões da fábrica. E me parece que não possa ir além deles, porque essa categoria teórica é constitutivamente estranha ao discurso das classes e da divisão de classes, que encontra na fábrica sua evidência mais macroscópica. A não ser que se entenda com o termo “direitos” -- sempre relacionado, contraditoriamente, ao tema “cidadania” -- aquilo que na realidade a classe operária consegue arrancar no terreno da luta de classes. Como também a história desses anos nos ensina, que quando mudam as relações de força, os supostos “direitos” desaparecem. Os poderes privados, na realidade, não encontram no direito nenhuma limitação. De resto, o fato de a cultura de esquerda ter substituído, já na passagem decisiva dos anos setenta para os anos oitenta, a leitura da realidade baseada na divisão da sociedade em classes e na relação entre as classes por uma leitura baseada no tema da cidadania e dos direitos, foi e é, de per si, homólogo (e propedêutico) ao triunfo atual da “sociedade civil”: nesse processo, aliás, se efetiva em boa parte aquele “triunfo do neoliberismo” que mencionei acima. 4. O mito da sociedade civilO segundo uso de Gramsci feito por Trentin, igualmente importante, ou talvez mais importante, no âmbito de sua argumentação de conjunto, liga Gramsci ao conceito de sociedade civil. Se, por uma parte, Trentin critica Gramsci a propósito dos temas da fábrica e da organização do trabalho, por outra mostra querer aceitar substancialmente sua lição no tocante ao primado da “sociedade civil”. Só que, a meu ver, aquilo que Trentin acredita ser as teses de Gramsci sobre a sociedade civil é, na realidade, a interpretação, ainda que importante, que do conceito de sociedade civil em Gramsci propôs Norberto Bobbio em sua célebre intervenção no encontro de Cagliari de 1967 e, em seguida, muitas vezes reeditada em livro: provavelmente o escrito sobre Gramsci que (a partir do final dos anos sessenta) teve maior influência e repercussão em toda a já imensa literatura sobre o argumento. Ainda que sem defender o alheamento de Gramsci em face da tradição marxista, o estudioso turinense sublinhava fortemente seus motivos de autonomia (que muitos leriam depois como “afastamento” e “inversão”) diante daquela tradição, determinados justamente a partir de uma concepção particular do conceito de sociedade civil. Esquematicamente, o argumento de Bobbio é o seguinte: tanto para Marx quanto para Gramsci a sociedade civil é o verdadeiro “teatro da história”. Mas para o primeiro ela faz parte do momento estrutural e para o segundo, do superestrutural; para Marx o “teatro da história” era a estrutura, a economia, e para Gramsci, a superestrutura, a cultura, o mundo das idéias. Para Bobbio, Gramsci era, sobretudo o teórico das superestruturas, no sentido de que o momento ético-político tinha em seu sistema teórico um lugar de fundação inédito em relação a Marx e ao marxismo. A antiga proclamação de Benedetto Croce diante das Cartas do cárcere -- “como homem de pensamento, ele foi um dos nossos” -- era repetida incansavelmente por Bobbio, que podia assim inserir Gramsci, líder comunista e teórico marxista, ainda que aberto e inovador, na grande tradição do pensamento liberal. Ou seja, repetia-se uma interpretação através da qual a cultura liberal buscava reabsorver Gramsci, dele fazendo um seu autor. Mas, para construir sua tese, Bobbio devia assumir e dar como suposta uma leitura mecanicista da relação estrutura-superestrutura, na qual a determinação em última instância de um dos dois termos se tornava determinação forte e imediata do altro nível da realidade: “teatro de toda a história”. Isto é, a estrutura ou a superestrutura, segundo o termo considerado mais importante (em Marx ou em Gramsci), parecia determinar completamente o outro. Parecia não haver mais momentos ao mesmo tempo de unidade e de autonomia, e de ação recíproca, entre os diversos níveis da realidade, momentos próprios de toda concepção dialética, como é indiscutivelmente a concepção de Gramsci. Já Togliatti, em 1958, falando da relação entre Estado e sociedade civil nos Cadernos, tinha sublinhado a natureza metódica e não orgânica dessa distinção, sobre a qual, de resto, Gramsci chamara a atenção inclusive ao propor o conceito de “bloco histórico”. Estrutura e superestrutura, economia, política e cultura são para Gramsci esferas unidas e ao mesmo tempo autônomas da realidade. Um dos pontos centrais do marxismo de Gramsci é não poder nem querer separar de modo hipostasiado nenhum aspecto do real (economia, sociedade, Estado, cultura). É indiscutível que em Gramsci haja o primado da subjetividade, da política, mas num sentido diverso daquele registrado por Bobbio. Sua tentativa de construir uma teoria da política e das formas ideológicas se dava invariavelmente a partir de Marx. Além disso, no marxismo de Gramsci irrompiam as novidades registradas na relação entre economia e política neste século, a ampliação da intervenção estatal na esfera da produção, a obra de organização e racionalização com que o político se refere à sociedade e em alguma medida a produz. Eram justamente os processos que -- a partir da fábrica fordista -- se haviam imposto nas sociedades capitalistas avançadas, e que Gramsci, por muito tempo único entre os marxistas, havia colhido em primeiro lugar. E se aqui havia uma novidade em relação a Marx, isso se devia ao fato de que se produzira uma novidade na história real que Bobbio não via devido à formalização idealista de seu discurso, que sempre vai de teoria a teoria, sem que nessa história das idéias jamais entre a história efetiva, sem que jamais apareça o referente real; nesse caso, as sociedades sobre as quais Marx e Gramsci refletem. A tradição liberal-democrata buscava mais uma vez assimilar Gramsci aos muitos intelectuais que o haviam precedido, dissolvendo os contornos reais de sua figura histórica, aquele nexo de teoria e prática que era a chave para compreender o que verdadeiramente dizia o autor dos Cadernos. Por que exatamente essa leitura de Bobbio tem um papel central na construção teórica de Trentin? Não seria, também isso, um dos tantos sinais do fato de que muitos intérpretes da esquerda estão hoje lendo o mundo pós-89 com as categorias centrais do pensamento liberal e, portanto, com o risco de uma forte subestimação do papel da política em favor da categoria de “sociedade civil”, quase por um processo, obviamente inconsciente, de “revolução passiva”? Evidentemente, o colapso dos socialismos reais e os limites manifestados pelo welfare não podem deixar de produzir perguntas, críticas e autocríticas, assim como a história soviética deste século também leva a refletir sobre a validade de alguns enunciados da teoria liberal no tocante aos limites do poder. O livro de Trentin é um ato de acusação argumentado e fascinante contra um certo marxismo excessivamente politicista e estatista. Resta o fato de que o “retorno à sociedade civil” foi a palavra de ordem do neoliberismo dos anos oitenta: chega de Estado -- em primeiro lugar, obviamente, o Estado social --, que a sociedade faça! Chega de política, chega de políticos profissionais, que ajam os representantes da sociedade civil! Naturalmente, existem duas versões desse “retorno à sociedade”, ambas centradas na crítica do político e ambas reforçadas pelo leitmotiv da globalização. A versão de direita, neoliberista em sentido estrito, que põe no centro do próprio universo os “espíritos animais do capitalismo”. E uma versão de esquerda, que pretende garantir os direitos e ampliar a cidadania, mas que -- justamente no momento em que põe como centrais tais categorias -- adere (às vezes inconscientemente) a uma visão propriamente liberal (e de fato também liberista). Ou seja, um tal horizonte teórico tem em sua base, de um modo ou de outro, uma concepção antropológica do sujeito inevitavelmente liberal: o indivíduo como prius, como o que vem antes de seu ser em sociedade, e por isto é portador de direitos. Ao passo que o marxismo, e Gramsci tem uma outra concepção do indivíduo, fundamentalmente relacional. Obviamente, existem concepções diversas da sociedade civil. Em Marx ela é o conjunto das relações pré-estatais, tendo ao centro as de tipo econômico. Em Gramsci (no rastro de um certo Hegel, como o próprio Bobbio especifica), ela compreende seja as relações pré-estatais seja sua regulamentação por parte do Estado: mais uma vez um pensamento dialético que não separa os diversos aspectos do real. No entanto, Bobbio, cuja teoria política é fortemente dicotômica e procede por pares opositivos, põe a dicotomia Estado-sociedade civil também no centro do pensamento de Gramsci, negando assim justamente aquilo que em Gramsci é mais importante: a não separação, a unidade dialética entre política e sociedade, entre economia e Estado. No rastro de Bobbio, não é, portanto casual que Trentin leia em Gramsci uma contradição entre centralidade do social e papel de legitimação do Estado. Partindo de Bobbio, ele subestima, a meu ver, o fato de que Gramsci atribui grande importância político-cognoscitiva aos sujeitos sociais e às formas de sua oposição e de sua relação (temática da hegemonia) e, ao mesmo tempo, põe no centro de sua reflexão o Estado: uma aproximação, essa entre hegemonia e Estado, por certo não-casual. ________________________
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